De maneira nenhuma, eu sinto. Houve um dia, em que deixei de viver com sentimentos. Deixei-os para trás. Afinal, que querem eles de nós? Que querem eles de nós, afinal? Seria um prazer perguntar-lhes. Então, um dia, convencida que era bonita o suficiente para os encantar, convidei-os a entrar, em minha casa. Na minha casa. É uma casa engraçada, é grandiosa. A sua cor é pálida, branco-sujo, mas branco-sujo não é cor. E a dona da casa herdou isso dela. Era uma casa tão antiga, que na entrada, havia um quadro enorme, de 1936, um retrato da casa. Tinha mudado muito. Antes, havia uma pequena estátua, no telhado. Agora a estátua encontra-se partida, a metade. Na rua passavam poucos carros, e carros antigos, de épocas passadas, que infelizmente já não se usam. Havia, dividindo a estrada do parque, um passeio, minimo. Agora, está cheio de árvores, e um dia até quase que caiu uma para cima da casa, quebrando apenas umas telhas que graças a Deus não cairam para o chão. Nessa altura, as árvores eram mais altas, mais estreitas, e eram nuas. Via-se no retrato também um banco, partido, com um ar maltratado. Esta casa, a minha casa, é um prodigio. É pena é que nem reparem muito nela, porque está escondida por arbustos, e outras plantas. A casa tinha mais de cinquenta janelas, todas prependiculares e enbelezadas. O edificio, por fora, nem parece grande coisa. Mas quando alguém entrada lá dentro, deixava as pessoas sem palavras. Estupefáctas, como se não acreditassem nos seus próprios olhos. Tinha três andares, umas escadas escassas, de 78 degraus no total. Possuía mais de quatro salas. E isso sim, é o mais importante. Os tectos da casa eram o mais elegante: nunca nenhum tecto fora feito com tanta precissão, e harmonia entre si. Pareciam perfeitos. Os quartos eram enormes, com espaço para mais de quatro camas. Do terceiro andar, a vista era lindissíma. Via-se todo o horizonte, para além do rio, das casas. Dava para ver a ponte, uma das tantas que foram construídas. Tinha um terraço, pequeno, mas com espaço suficiente para brincar. Nas paredes do terraço, havia desenhos feitos a tinta, e a marca do meu pé e da minha mão, para ver as mudanças daqui a dez anos. Era um sitio utópico. Imaginável, lunático. Um sitio bom para estar. Vivia lá com a minha mãe, e a minha avó. Também com a minha irmã, antes do grande desastre acontecer. A nossa familia era alegre. E mesmo não tendo uma figura masculina, éramos muito felizes. Tinhamos uma relação boa, comunicávamos entre nós, não havia medos. Tudo se mudou entretanto. A casa começou a envelhecer. A ficar com pó, a ficar com um branco-sujo, um branco-sujo tão sujo que quase era preto-não-sujo. Estava a desmorecer-se. Tudo. O dinheiro estava a escassiar, o tempo, estava a terminar. Nós já não falávamos como antes falávamos. Aliás, raramente falávamos. A beleza da casa começava a desvanecer-se, já não se via como antes se via, não se olhava como antes se olhava, não se pensava como antes se pensava. Estava um ambiente pesado. Um dia, ergueram-se as forças de novo, do nada, simplesmente, sim. Mandou fazerem-se obras na casa. Mas depois aconteceu o desastre. E não vos vou falar do desastre. O desastre derrubou-nos. A todos nós.
E deixei de viver sem sentimentos. Porque nós não mereciamos. Nunca fizémos nada para magoar, nunca magoámos, sempre ajudá-mos, até doámos algum dinheiro, uma vez. Quando passávamos por um mendigo na rua, ajudáva-mos. Eramos o estéreotipo de felicidade. Deixámos de o ser. Já não sabia como ajudar a minha familia, o que fazer. Era uma criança. Uma pita, armada em heroína. É isso, mesmo. Não mereciamos.
E agora pensem no que os sentimentos me disseram, depois de ver o nosso estado.
Acreditem ou não, a casa ali retratada é a minha casa. É a minha casa. Tem muitos quartos, estão todos convidados.
Estou a olhar para o retrato da casa enquanto escrevo isto.
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E desculpem pelo post, mas estava na altura de deitar alguma coisa cá para fora. Não quero viver mais.
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